quarta-feira, 11 de maio de 2011

Pela Justiça, ainda que contra a Lei

Sebastião Verly 10-04-11
A frase título pronunciada pelo Professor Betâmio em sala de aula do Colégio Municipal, no ano de 1960, influenciou profundamente a minha ideologia com reflexos significativos em minha vida e nas relações com as pessoas.
Para mim, Justiça não exige nem admite adjetivos ou questionamentos. Justiça é Justiça e pronto. Virtude com igual característica, apenas a Ética. Ambas dispensam explicações. Todo mundo sabe, mesmo que ninguém consiga explicar.
Caberia tertúlias filosóficas a discutir filigranas jurídicas para entrar em detalhes das possíveis aplicações  e condições específicas, próprias para elucidar o que, já, em si, traz um “imperativo categórico” como também o traz sua irmã siamesa, a Ética. 
Há alguns dias, conversava com nosso colega, o geógrafo Henrique Mafra que, cursa com brilhantismo e, me permita dizer, até com um pouco de paixão saudável, o curso de Direito da Universidade Federal, quando ele questionou a frase e foi mais longe ao questionar a minha afirmativa de que a Justiça dispensa complementos. Eu digo que Justiça é sempre boa e valiosa. Ele questionava: “o que é justo? O que é Justiça para um pode não ser para outro.”
Agora, leio a Professora Sânia, ao comentar o provocante artigo do Milton Tavares Campos, no portal www.metro.org.br  em que ela pergunta: “Quem é que define quem são os justos e quem são os injustos?”
Recorri a Platão e a Aristóteles. Divaguei pelas obras de outros autores e senti o quão complexo é explicar aquilo que se transformou, pelo cultivo de tantos anos no interior minha alma, em um tautológico “imperativo categórico”.
                Mesmo assim, prosseguirei nos meus estudos e reflexões (quem sabe eu consiga estudar direito), desejoso de encontrar uma demonstração convincente de que este meu ideal seja verdadeiro.
         Nas palavras de Aristóteles:
 “A justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente a si mesmas como também em relação ao próximo. “ 
          E assim:
          “A ação justa se é reconhecida pelo seu contrário, ou seja, pela ação injusta, pois, “muitas das vezes se reconhece uma disposição da alma graças a outra contrária, e muitas vezes as disposições são idênticas por via das pessoas nas quais elas se manifestam”.
          Vamos pensar mais e aprofundar nesta questão, sempre à procura de um caminho ideal para defender o que há de mais desejado neste mundo que é a felicidade, nossa e dos nossos semelhantes. Pois, só poderemos usufruir – com tranqÃ?ilidade e segurança - da verdadeira felicidade, quando todos os seres viventes também gozarem deste benefício tão distante, mas, mesmo assim, possível e viável.          
          Isto é justo, ético e desejável. E é o que os justos preconizam.

Juiz, a Lei e o Justo
Nilton Tavares da Silva  Juiz de Direito no RS 
“Tem-se, em tal particular, entendimentos históricos que se consolidaram a partir de construções pretorianas (decisões de juízes e tribunais) por realizarem justiça, ainda que ao arrepio de textos legais. Assim, por exemplo, o reconhecimento dos direitos da concubina antes da Constituição de 88, a despeito de expressa vedação no nosso vetusto Código Civil; da guarda de filho que eventualmente se confere à m ãe reputada culpada em processo de separação judicial litigiosa (a lei do divórcio dita o contrário) por representar o melhor para a criança, e assim por diante.
Nesse contexto, por ser a realidade mais rica do que a ficção, vale ser citada, e transcrita, decisão lapidar proferida há mais de três décadas na Capital do Estado pelo então Juiz de Direito, hoje Desembargador aposentado MOACIR DANILO RODRIGUES, a qual, à época, teve repercussão não só na imprensa nacional mas também no exterior, justamente por demonstrar que, em determinadas circunstâncias, não pode o operador do direito ater-se ao texto frio da norma se na prática resultar solução injusta. Veja-se, enfim, o que e como decidiu aquele Magistrado ao lhe ser requerida expedição de "portaria judicial" (instituto esdrúxulo, felizmente banido do CPP pela CF de 88 ao conferir competência exclusiva ao MP na iniciativa da ação penal), para que fosse criminalmente processado um cidadão humilde pela contravenção de vadiagem.
Ei-la:
"Marco Antonio Dornelles de Araújo, com 29 anos, brasileiro, solteiro, operário, foi indiciado em inquérito policial pela contravenção de vadiagens prevista no artigo 59 da lei das Contravenções Penais. Requer o Ministério Público a expedição de Portaria contravencional.
O que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo supramencionado: "entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho..."
Trata-se de norma legal draconiana, injusta e parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara do Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho do pobre que, pobre é, sujeito está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar meios de subsistência.
Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de Direito. Realidade dura e crua para quem enfrenta, diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego. Constatação cruel para que, diplomado, incursiona pelos caminhos da Justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo peso.
Marco Antonio mora na Ilha das Flores (mora?), no estuário do Guaíba. Carrega sacos. Trabalha "em nome" de um irmão. Seu mal foi estar em um bar da Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante de Petrópolis, ou ainda numa boate de Ipanema?
Na escala de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de canha, num bolicho da Volunta, às 22 horas e não tem documento, nem um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo carro, com a carteira recheada de "cheques especiais", é um burguês.
Este, se é pego por cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez, paga fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego é preso por vadiagem. Não tem fiança (e mesmo que houvesse, não teria dinheiro para pagá-la), e fica preso.
De outro lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O "zé-ninguém" (já está dito), não tem amigos influentes. Não há apresentação. Não há padrinho. Não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais tragédia que humor) de Chico Anísio.
As mãos que fazem força que carregam sacos, que produzem argamassa, que se agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calor, unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a assinatura do indiciado à fl. 5v.), nem com a vida. E hoje, para qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena para o graúdo. E deles é o reino da Terra. Marco Antonio, apesar da imponência do nome é miúdo. E sempre será. Sua esperança? Talvez o Reino do Céu.
A lei é injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o Juiz não é. Por isso:
Determino o arquivamento deste inquérito.
Porto Alegre, 27 de setembro de 1979. (a) Moacir Danilo Rodrigues, Juiz de direito - 3ª. Vara Criminal."
Como se vê,
ainda que se deva ter na lei o grande norte, situações concretas existem, contudo, que a sua fiel observância pode significar, insisto, atropelo a comezinhos e elementares princípios da justiça, o que por certo desserve ao Direito. Há de prevalecer em situações excepcionais, assim, o secular brocardo latino: "a pro iure, quamvis contra legem" (pela justiça, ainda que contra a lei). Aliás, se esta não for a opção, se preponderar a rígida aplicação dos textos legais sem outros compromissos, desnecessária à evidência a intervenção dos operadores do direito, posto que um simples computador com certeza melhor desempenharia a tarefa.
De tal, por certo, não se há de cogitar.
Fonte: Nilton Tavares da Silva, Juiz de Direito

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